Por Aira Bonfim (airafbonfim@gmail.com) - site historiadoesporte.wordpress.com/
Enquanto alguns jornais e revistas do início do século passado buscavam associar a imagem de mulheres esportistas à atributos de delicadeza, beleza e frivolidades, acervos fotográficos da coleção do Instituto Tavares de Lyra (RN) e registros da revista carioca Vida Sportiva revelam imagens de garotas atléticas reais – e nem tão graciosas assim.
O olhar marrento, os corpos fardados e os braços cruzados são pistas visuais oferecidas por esses acervos que nos ajudam a pensar as formas de apropriação prática do futebol pelas brasileiras das primeiras décadas do século XX.
O exemplo aqui escolhido refere-se às fontes disponíveis sobre as equipes femininas de futebol do estado do Rio Grande do Norte e que circularam pela imprensa brasileira entre os anos de 1918 a 1920.
Em março de 1920 o semanário Vida Sportiva, responsável pela divulgação de notícias esportivas dos mais longínquos estados do Brasil, revelaria na sua capa a foto do ABC Football Club, time de futebol feminino da cidade de Natal, e, curiosamente associado a Liga de Desportos Terrestres na mesma época.
A foto da capa refere-se a um campeonato de futebol feminino realizado no sítio Senegal, residência do Coronel Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Quincas Moura. Tratava-se, de acordo com a mesma revista, de um prélio perdido de 12×0 pelo ABC F.C. (capa) contra o scratch feminino do Centro Sportivo Natalense, outra equipe pertencente à liga potiguar.
Tanto a raridade visual como a evidência histórica da partida de futebol são confirmações importantes que mulheres jogaram bola no Brasil, principalmente quando levamos em conta que na mesma época tal modalidade só crescia e se popularizava em todos os estados.
Nos últimos anos, tanto a mídia esportiva, como pesquisadores e instituições tem reiterado o episódio paulistano de 1921 entre as “senhoritas” dos bairros do Tremembé́ e da Cantareira, como um marco inaugural de moças jogando bola no Brasil. No entanto, apesar de existirem novas confirmações de episódios isolados entre meninas, antes e depois de 1921, o futebol feminino, como modalidade esportiva e competitiva, não se desenvolveu oficialmente como modalidade naquela época.
Diferente das experiências iniciadoras do futebol masculino no país, a exemplo de Charles Miller em São Paulo, e outros entusiastas do esporte bretão inglês como Thomas Donohue (Bangu Athletic Club) e Oscar Cox (Fluminense Football Club), às iniciações femininas nesse esporte aproximam-se mais das experiências atléticas vividas entre as crianças, presenciadas principalmente nas ruas, escolas, igrejas, clubes e nas periferias das festividades esportivas.
Meses antes da divulgação da capa feminina na Vida Sportiva, a revista afirmou que a cidade do Natal podia gabar-se de ter sido a primeira do Brasil a criar agremiações esportivas “de elementos exclusivamente femininos”[1]. O texto referia-se ao Centro Náutico Feminino de Natal e o Clube Náutico Jundiahy, da cidade de Macaíba, fundados sob a orientação do Centro Náutico Natalense. Todos, desde 1918, já ostentavam publicamente garotas disputando provas de remo.
De acordo as notícias sobre a vida esportiva norte-io-grandense, o ano de 1915 havia marcado o grande boom das práticas esportivas entre aquela comunidade do Nordeste. Os cronistas de Vida Sportiva narram que graças ao football e os esportes náuticos em pouco tempo se proliferaram os encontros atléticos entre a juventude de Natal.[2]
Com exceção do turfe, as elites de Natal e redondezas já se consideravam pessoas com acesso a uma variada gama de esportes em 1915. Houve inclusive investimento público do governo local, que apesar de modesto, foi citado na época como uma contribuição significativa para o desenvolvimento esportivo da região.
Enquanto uma parte da juventude feminina experimentava as competições de regatas (os rowings), os textos da revista também revelam a experimentação feminina em outras variedades esportivas que, na “impossibilidade absoluta de praticarem o football, elas haviam inventado o hand-ball e praticavam o basketball”:
“O bello sexo natalense não quis ficar indifferente a esse louvável movimento patriótico da juventude masculina.
Adheriu à nobre causa, certo de que a educação physica é uma necessidade.
Empreendedora, intelligente, a mocidade feminina natalense, resolveu também entregar-se à prática de desportos (…)” [3]
A novidade o futebol feminino revelado pelo semanário Vida Sportiva, órgão oficial dos cronistas esportivos do Rio de Janeiro, já havia antecipado o tema na sua capa de um mês antes, em 21 de fevereiro de 1920, quando escolheu a ilustração de uma jogadora de futebol vestida com o uniforme do Botafogo Futebol Clube, do Rio de Janeiro.[4]
Se desconhece qualquer performance pública de mulheres jogando bola no clube do Botafogo nessa época, no entanto, o mesmo não se pode dizer de outros clubes cariocas como o Villa Isabel F.C.(1915), o Progresso F.C.(1919), o C.R. Flamengo (1919) e o River S.C.(1919), que já indicavam a exibição de equipes mistas ou de meninas contra meninos nas suas festividades esportivas e domingueiras.[5]
Após alguns meses da publicação das capas da revista Vida Sportiva com jogadoras de futebol, em meados de 1920, encontra-se também no Rio de Janeiro, evidências de mulheres jogando futebol no Helios (1920), C.R. Vasco da Gama (1923), S.C. Celeste (1923) e São Cristóvão A.C. (1929).
A investida das capas com mulheres esportistas, além de outra publicação sobre o team feminino potiguar divulgada em maio de 1920 [6] inserem-se num contexto de divulgação de crônicas que incentivaram a prática dos esportes entre as brasileiras pela revista Vida Sportiva.
Textos com títulos sugestivos como: ‘Porque não se incita o sexo frágil a praticar os sports?’(1918), “a mulher nos sports”, a “a saúde e a belleza da mulher pelo cultura physica”, “o dever physico da mulher moderna”, todas de 1920, exemplificam o tom da campanha empreendida por esse veículo de imprensa da época.
Vale destacar que o ano de 1920 também marcou a profusão de equipes de futebol feminino na Europa. Só na França, no mesmo ano, estima-se que em torno de 150 grupos jogaram bola.[7] Anos antes, também foi fundada La Fédération des Sociétés Feminines et Sportives de France, que entre tantas ações, destaca-se a parceria com as pioneiras do futebol, as desportistas inglesas.
A parceria europeia resultou no primeiro jogo internacional feminino entre Inglaterra e França, em Preston, com 25 mil espectadores em 1920. A partida feminina entre França e Inglaterra, em julho de 1920, ganhou uma página inteira da Vida Sportiva[1]. Esse episódio aconteceu no campo do Chelsea F.C. e a publicação trouxe imagens das capitãs Macgnemond e Kell, assim como uma defesa da goleira da equipe francesa (Fémina Sport) e uma cena da partida de futebol (com um árbitro homem!)
De volta ao cenário brasileiro e ao estado do Rio Grande do Norte, endereço das primeiras imagens publicadas do futebol feminino no país, vale destacar algumas pequenas curiosidades sobre as agremiações esportivas potiguares. O Centro Sportivo Natalense foi fundado da associação entre o Flamengo Foot-ball Club com o Alecrim Foot-ball Club[9], ambos de Natal.
O sportman João Café Filho (1899-1970), nessa época, era o diretor de esportes do Alecrim F.C. O jovem potiguar era o goleiro da agremiação e anos mais tarde, o único potiguar a ocupar o cargo de presidente do Brasil, desde que assumiu a presidência entre 24 de agosto de 1954 e 8 de novembro de 1955, depois do suicídio de Getúlio Vargas.
Se já não fosse um episódio revelador, o historiador Dr. Anderson Tavares de Lyra, fundador do Instituto Norte-Rio-Grandense de Genealogia e do Instituto Tavares de Lyra (Macaíba- RN), apresenta na sua catalogação fotográfica informações que identificam a volante da equipe do Centro Sportivo Natalense como sendo Jandira Carvalho de Oliveira Café (1904-1989), futura esposa de João Fernandes Campos Café Filho e primeira dama do Brasil.
Além da constatação que uma primeira dama nordestina atuou nos primórdios do futebol de mulheres no Brasil, ainda há mais novidades entre o seleto grupo. A equipe feminina rival do ABC Football Club também conta com outra personagem de prestígio nacional: Celina Guimarães Viana (1890-1972). A jogadora do ABC F.C. (time da capa da Vida Sportiva), além de dona do acervo de fotos disponíveis hoje no Instituto Tavares de Lyra, se tornou professora e reconhecida como a primeira mulher a conquistar o direito ao voto no Brasil em 1927.[10]
Segundo o memorialista Anderson Tavares de Lyra, as fotografias da época apresentam dois espaços: o estádio Juvenal Lamartine e o sítio Senegal, ambos no bairro do Tirol e pertencentes ao Coronel da Guarda Nacional e Presidente da Intendência de Natal, Joaquim Manoel Teixeira de Moura, Quincas Moura.
O coronel, adepto das animações proporcionadas pelos encontros festivos e esportivos naquela região, tinha entre suas convidadas, sobrinhas, primas e filhas. O episódio das jogadoras de futebol do Rio Grande do Norte é excepcional e curioso em sua época, e ao mesmo tempo, na luz da contemporaneidade, 100 anos mais tarde, são histórias e protagonismos pouco conhecidos de mulheres, jogadoras, historiadores e instituições do esporte.
Em 2020, continuamos demandando esforços coletivos para constituir histórias mais plurais de um esporte que despertou paixões em todos os tipos de pessoas – e essa totalidade também inclui as mulheres.
O recado já estava dado pelo cronista da revista Vida Sportiva de 1918:
“quem está affeito a assistir as lutas de football, quantas vezes não terá adimirado do enthusiasmo com que varias torcedoras assistem o transcorrer da pugna?
Essas torcedoras, adeptas da cultura physica, não sentirão por vezes, ancias de se entremearem nas lutas?
Certamente que sim!
Animome-las! Incitemo-las, para que em breve possamos ver em cada recanto da nossa capital, um club em que a mulher possa cultivar os sports”.[11]
Notas
[1] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 11, 13 dez. 1919.
[2] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 3, 29 nov. 1919.
[3] Idem.
[4] O escudo da imagem sugere a composição de letras que o clube carioca usava antes da fusão com o Clube de Regatas Botafogo.
[5] BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019. 213 f. Dissertação (Mestrado em História) – CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.
[6] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 18, 15 mai. 1920.
[7] Williams, 2003; Doble, 2017; William e Ress, 2015.
[8] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 19, 24 jul. 1920.
[9] Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 6 jul. 1918.
[10]http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/celina-guimara-es-de-primeira-eleitora-a-a-rbitra-de-futebol/451775. Acesso em junho de 2020.
[11] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 7, 8 jun. 1918.
Referências
BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915–1941). 2019, Dissertação — Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de janeiro, 2019.
matéria publicada originalmente no site
https://historiadoesporte.wordpress.com/2020/07/27/100-anos-do-futebol-feminino-no-rio-grande-do-norte-historias-de-pioneirismo-e-protagonismo-esportivo/?blogsub=confirming#blog_subscription-3
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